Projeto

Histórico



Quem foi Edward Steuermann? Quantos pianistas se dedicaram, além das atividades rotineiras de um intérprete, a divulgar de maneira fervorosa a música moderna? E, especialmente, da produção da Escola de Viena?

De qualquer maneira, todo aquele que se aproximou suficientemente da Escola de Viena também se deparou com a importância da atuação de Steuermann neste drama. Quem conhece suas poucas gravações não pode deixar, como eu, de reparar as suas excepcionais qualidades de intérprete e músico. E saber que grandes pianistas da atualidade como Moura Limpany, Alfred Brendel e Russel Scherman foram seus alunos, além de deixar clara sua atuação didática, foi um fato que constantemente aguçou minha curiosidade de pianista. Entretanto, a procura de maiores informações a respeito de Steuermann sempre se revelou totalmente infrutífera.

Para continuar as pesquisas a respeito de Robert Schumann, trabalho que me absorve e fascina desde o mestrado, pleiteei junto à CAPES uma bolsa de pós-doutoramento em 1989. Já há muito eu vinha me dedicando a estabelecer uma série de relações entre Robert Schumann e Franz Liszt, a partir não somente de suas produções musicais, mas também de suas idéias literárias e de seu relacionamento pessoal. A Biblioteca do Congresso em Washington, Estados Unidos, me parecia o lugar ideal para o início deste trabalho, pela extensão de seu acervo. E, ao mesmo tempo, tinha uma ponta de esperança em descobrir ali alguma coisa a respeito de Edward Steuermann. O projeto foi aceito e a possibilidade de desenvolver a pesquisa em Washington a partir de junho de 1990 tornou-se realidade.

Ao perguntar a Elizabeth Auman, chefe da Divisão de Música da Biblioteca do Congresso, se poderia me indicar algum material que me esclarecesse, de alguma forma, a respeito dos anos em que Steuermann viveu nos Estados Unidos, ela ficou bastante surpresa e pediu-me que esperasse um pouco. Minutos depois, voltou com uma pasta bastante volumosa para que eu lesse. Minha surpresa foi sem dúvida muito maior: a pasta continha um grande processo burocrático da aquisição recente, por parte da Biblioteca, de todo o material de Edward Steuermann, que estava em poder de Rachel e Rebeca, suas filhas.

Imediatamente me interessei por este acervo a ponto de, por algum tempo, deixar de lado os trabalhos sobre Schumann e Liszt.

A Coleção Steuermann foi inteiramente colocada a minha disposição, mesmo sem estar catalogada e encontrando-se ordenada apenas em uma pequena parte. Aos poucos, todo o universo de Steuermann se apresentou diante de mim e, não com pouca dificuldade, pude começar a montar sua história.

Foi uma tarefa à qual me atirei por inteiro.

A partir de então já se tornava claro para mim que, à parte as pesquisas inadiáveis, o trabalho propriamente dito sobre Schumann/Liszt teria que esperar um pouco para ser desenvolvido mais profundamente.

Ao mesmo tempo em que prosseguia na leitura de todas as cartas, documentos, artigos, recortes de jornais, uma sensação de desconforto começou a tomar conta de mim. Eu era um estranho invadindo a privacidade não apenas de uma pessoa, mas de toda uma família. Comecei a me sentir compelido a escrever aos responsáveis pelo acervo a fim de explicar quem era, de onde vinha, o que estava fazendo e o que pretendia com tudo aquilo. Foi exatamente o que fiz: escrevi uma carta a Rachel Steuermann, filha de Edward Steuermann, que vive em Nova Iorque, e cujo endereço constava na transferência do acervo. Nesta carta expunha minhas sensações e praticamente pedia licença para invadir sua vida. Mas, a resposta não veio, e continuei a trabalhar.

O levantamento do material referente a Robert Schumann ia progredindo aos poucos, preterido na verdade pelo fascínio que a leitura dos documentos da Coleção Steuermann me causava. Quando eu poderia imaginar que teria em mãos a coleção completa e original – desde o primeiro exemplar – da Neue Zeitschrift fur Musik!

Elizabeth Auman, neste meio tempo, me apresentou a Maria Snyder, que havia estudado durante onze anos com Edward Steuermann. Na época, Maria organizava a programação musical do National Building Museum, de Washington. Dona de uma simpatia contagiante e de uma jovialidade invejável, os depoimentos de seus estudos e convívio com Steuermann foram preciosos. Muitas dúvidas foram esclarecidas, pois a leitura de toda aquela documentação às vezes me deixava extremamente confuso: não fazia idéia de quem eram as pessoas a quem se faziam referências, havia apelidos substituindo nomes, as datas eram praticamente inexistentes, e tantos outros detalhes. Sua ajuda foi imperativa
para que eu conseguisse organizar o trabalho que pretendia fazer.

À medida que ia lendo a coleção Steuermann, ficava cada vez mais encantado com aquele personagem. Suas idéias, seus textos, seus pensamentos, seus ensinamentos e sua visão musical me apontavam uma direção que me atraía cada vez mais.

Dois meses se passaram quando, finalmente, recebi uma resposta de Rachel Steuermann. Extremamente simpática e receptiva, contava que durante dois meses havia deixado minha carta sobre seu criado-mudo, pensando se deveria ler ou não, pois intuíra que deveria ser alguma coisa relativa a seu pai, o que para ela, por razões pessoais, sempre foi algo muito penoso de discutir e que trazia memórias bastante amargas. Mas decidiu-se por lê-la e achou-a sincera e confiável. Colocava-se inteiramente à minha disposição, entusiasmada por ser eu a primeira pessoa a consultar a Coleção Steuermann e me convidava a visitá-la em Nova York, o que fiz imediatamente.

Nosso encontro foi, num primeiro momento, meio formal e distante. Eu era para ela um total desconhecido e ao mesmo tempo alguém que conhecia muito a seu respeito e de sua família, em conseqüência de minhas leituras. Daríamos, tempos depois, boas risadas de tudo isso pois, na verdade, pude esclarecer muitos fatos e aspectos do passado de seu pai e de sua família que ela desconhecia totalmente. Steuermann havia morrido quando Rachel era criança e sua vida foi extremamente difícil e cheia de problemas. Ela desconhecia o conteúdo de grande parte do material que havia enviado à Biblioteca do Congresso. O convívio com Rachel foi intenso, e o resultado foi o início e solidificação de uma grande amizade.

Rachel Steuermann forneceu-me grande parte dos materiais que não foi possível conseguir ou que não se encontram na Biblioteca do Congresso: gravações das obras compostas por Edward Steuermann, cópia em fita de um famoso recital Chopin que ele fez na Juilliard School, de Nova York, pouco antes de morrer, além de gravações de conversas telefônicas e aulas. Um raríssimo disco, dos dois únicos que Steuermann gravou contendo toda a obra de Arnold Schoenberg para piano, e muitos filmes super-8 fazem parte deste material. Raquel também autorizou, com exclusividade, a cópia e a divulgação do material que julgasse pertinente.

A partir de 1990 foram realizadas inúmeras visitas à Biblioteca do Congresso de Washington, até que em 2003 apresentei projeto de pesquisa à FAPESP, cujo objetivo seria a construção de um website que pudesse disponibilizar amplamente todo este material.

Este projeto pretende redesenhar a figura de um mestre ímpar na história da música contemporânea: seu papel como professor, que através de uma abordagem pedagógica inovadora, privilegiou a reflexão musical; sua ação como pianista, preocupado em transformar a música do passado na música do futuro, dedicando-se também, em superar e transcender os conteúdos da música contemporânea, que encontrou nele seu grande divulgador; seus ideais como compositor, ao propor um discurso musical flexível, mas sem se deter na utilização de esquemas
exclusivamente racionais e artificiais.

Àqueles que procuram saber mais do que apenas elogiosas menções, este site pretende apresentar Edward Steuermann.

Mas continuo sempre na expectativa que novos trabalhos possam surgir, fazendo justiça à sua importância, como a figura que foi e não apenas como fundo que realça o brilho de outros.

Amilcar Zani